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A Liberdade de Cézanne: Entre Indeterminação e Condicionamento


O célebre escritor Émile Zola, amigo de infância do pintor Paul Cézanne, atribuiu a forma muito peculiar de pintar deste aos distúrbios psíquicos dos quais padecia. Na verdade, o escritor francês não foi o único a aventar tal hipótese, parece que parte da crítica de arte especializada da época considerou a pintura de Cézanne como de baixa qualidade e atribuiu tal fato de um modo ou de outro a seus problemas neurológicos (notadamente, a esquizoidia). Neste sentido, o próprio pintor chegou a questionar, mesmo no fim de sua vida, se sua forma muito peculiar de retratar o mundo não seria apenas fruto de uma percepção distorcida ou insuficiente deste.

A questão, quando extrapolada para a arte em geral, passa a dizer respeito à liberdade da qual o autor goza ao criar sua obra. Cézanne buscava pintar a natureza, e certamente percebia como os modos que ele escolhia para fazê-lo o levavam a resultados diferentes daqueles dos artistas clássicos, os quais punham a si estes mesmos propósitos. Se, como Cézanne cogitara, as peculiaridades em sua obra foram devidas à uma percepção alterada da realidade condicionada por suas patologias, podemos dizer que as inovações que introduziu na arte por meio de sua forma peculiar de pintar o foram de forma livre? Mas, mais que isto, não é apenas o artista doente que encontra condições pré-existentes que determinam ou ao menos influenciam muito fortemente sua obra de um modo ou de outro.


A todos, pintores, escritores, cineastas, etc., enquanto homens e mulheres, assomam-se uma série de experiências e dados naturais e culturais que de algum modo ou outro aparecerão em sua obra. Consideremos o caso de Leonardo da Vinci. Enquanto criança, o grande humanista teve uma experiência na qual um abutre colocou repetidamente a cauda em sua boca. Apesar deste fato, que pode até ter sido de certa forma traumático, pelo que consta não se falava que Da Vinci fosse portador de alguma patologia de ordem psíquica. Ainda assim, parece que ele não era exatamente livre para evitar que a figura do abutre se mostrasse vez ou outra em seus trabalhos, como por sinal acontece em seu quadro “A Virgem e o Menino com Santa Ana”, no qual vemos que o manto da santa toma forma parecida com a de um abutre e roça a boca do infante; mesmo que eventualmente possamos até mesmo pensar que foi como se um “segundo” Da Vinci em Da Vinci o tivesse posto ali. Seja como for, é a experiência vivida pelo autor que lhe dá os conteúdos os quais ele articulará em suas obras. Neste sentido a questão que se nos propõe estudar é se o artista encontra-se ou não livre quando cria sua obra.

Estas indagações todas que brevemente esboçamos estão postas e articuladas no ensaio “A Dúvida de Cézanne”, de Maurice Merleau-Ponty. Para desenvolve-las, devemos justamente considerar o que Merleau-Ponty entende por liberdade. É curioso perceber como neste âmbito o filósofo busca manter o procedimento que orienta sua obra em geral, qual seja, eliminar os dualismos. Para tanto, buscará ele compreender a liberdade não como “alguma força abstrata que superpusesse seus efeitos aos ‘dados’ da vida ou escandisse o desenvolvimento”, mas sim na medida em que se dá concretamente em meio a estes dados da vida, os quais se por um lado são condições de partida com as quais todos os agentes têm inescapavelmente de lidar, por outro não determinam por completo todo e cada ato que virá a ser tomado pelo agente ao longo de sua vida. Observemos mais proximamente o desenvolver destes temas.

Quando relacionamos vida e obra, poderíamos considerar que o artista é totalmente determinado pela primeira ao fazer a segunda, que não existe forma de expressar qualquer conteúdo que não fosse de início já dado. Neste caso, a impossibilidade da liberdade estaria na inexistência da criação por parte do artista, ao qual caberia apenas retrabalhar os elementos que a experiência ao longo do tempo lhe deu. Esta parece ser a forma pela qual Émile Bernard interpreta a afirmação de Cézanne de que buscava fazer não simplesmente pintura mas a própria natureza


O amigo do pintor entendia que este estava a buscar as coisas reais nelas mesmas, mas mantendo os métodos do impressionismo de apenas representa-las na medida em que eram filtradas pelas sensações; parece que não era assim que Cézanne compreendia a seu próprio trabalho. De qualquer modo, o ponto a notar é como por esta interpretação do projeto artístico de Cézanne ele não era efetivamente livre para criar sua obra, ele possuía um mundo a representar. Quanto à afirmação diametralmente oposta, a de que a obra em nada dependeria da vida, nos lembra o autor que a liberdade não pode ser concebida de modo abstraído das relações concretas, como algo que a elas se sobrepusesse (Merleau-Ponty na verdade gasta poucas palavras com esta posição).


Mesmo o autor que de acordo com Paul Valery se poderia pensar como o paroxismo da liberdade, Da Vinci, já se mostrou também não deixar de ter encontrado pelo menos em algum sentido sua obra vinculada com o mundo em que vivia. Em suma, se eventualmente concebermos que o autor é livre, não será de modo a entender que sua obra em nada tem ligação com sua vida, pelo contrário, uma certa obra exige uma certa vida para que possa ser concretizada. Negar isto seria efetivamente dizer que a doença de Cézanne em absolutamente nada afeta seu modo de pintar.

Refutada a total determinação ou a total indeterminação, fica Merleau-Ponty obrigado a pensar um conceito de liberdade que não ignore as condições pré-existentes ao ato expressivo mas também não as tenha por determinantes. Suas considerações sobre a relação entre o autor e a cultura são exemplo muito relevante. Todo autor vive em um mundo já dado, no qual os sentidos das coisas foram estabelecidos. Contudo, reafirmar estes sentidos é apenas uma forma derivada de expressão, a forma autentica desta envolve refundar a cultura a partir da apropriação da mesma. O autor recoloca os sinais aos quais sentidos já foram previamente atribuídos em novas relações, as quais deslocam estes sentidos e os recriam, deste modo, não está apenas fundando um sentido, mas também toda uma nova forma de expressá-lo. Isto é para ele uma necessidade na medida em que este sentido somente surge na própria relação entre os signos utilizados para representa-los. O autor na verdade nunca quer meramente representar o mundo, mas sim expressá-lo.

É nesta necessidade de criar toda uma forma de comunicação que podemos encontrar a liberdade do autor em relação aos dados que precedem a obra. Mesmo que Cézanne percebesse o mundo de forma alterada ele era livre em sua arte pois suas pinturas não se limitavam a retratá-lo mas tinham a função de o expressar. Linguisticamente, pode-se dizer que o autor não cria apenas significados mas também significantes, justamente na medida em que os dois são a princípio indistinguíveis; isto só se faz em momento posterior por meio da análise. As eventuais patologias de Cézanne serviam apenas para dar-lhe o mundo que iria vir a expressar bem como qualquer autor tem uma experiência de mundo, mas a expressão em si, e aí está sua obra, apenas poderia vir de seu próprio labor. No limite, o ato livre é um ato de atribuição de sentido, um projeto por meio do qual passado e futuro não funcionam de modo causal, mas interpretam-se mutuamente e isto permite justamente que a condição de partida seja superada. A psicanálise aprendeu esta verdade na medida em que consegue conceber a liberdade de modo concreto, como a “retomada criativa de si mesmo”; ao invés de buscar atribuir causalidades estritas relacionando acontecimentos do futuro aos do passado, percebe como aqueles são retomadas e reinterpretação destes, a liberdade existe na possibilidade de ressignificar os atos em nossa própria vida. Neste contexto, liberdade toma um sentido relacional, nossas experiências criam condições de possibilidade que limitam nossas possibilidades de ação, face a uma situação, cabe aceita-la ou recusá-la, mas ainda assim temos a liberdade justamente de constitui-la como uma ou outra.

Para o pintor, uma obra exige necessariamente que se ponha um ou outro traço determinado para que ela possa se compor. Ainda assim, se é livre justamente para decidir qual é esta obra que se deseja criar dentre as muitas que nossa vida tornou possíveis. Em escolhendo uma, e tal escolha se faz justamente na medida em que se concretiza um certo traço na tela, damos ao nosso passado um novo sentido, destacando nele os antecedentes do trabalho que agora toma corpo. Todos os elementos que constarão em uma obra já estão na vida, mas o autor é livre justamente na medida em que o passado é apenas prenúncio e não causa, de modo que esta condição inicial pode ser por meio de nossos esforços superada, mesmo que não abandonada por inteiro. Assim, o autor é livre para realizar sua obra exatamente no mesmo sentido em que o homem é livre em sua ação, enquanto um criador de símbolos.

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