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Proibida a entrada! “As pequenas margaridas” e a subversão da realidade.

“O mundo anda tão depravado...” Piscando os cílios longos, com uma presença ingênua, Marie comenta com sua irmã, em um longo suspiro. Apresento-os Marie e Marie, no exato momento em que decidem se adequar ao mundo sendo depravadas. Desde então, essa dupla assume atitudes de deixar a moral tradicional descabelada: saem com homens mais velhos para que estes lhes paguem jantares caros, comem com gula em um país atingido pela fome, furtam, são as rainhas do desperdício e da manipulação. Fazem do mundo o seu palco e nele encenam uma história sem limites, um espetáculo capaz de gerar amor ou ódio do público, dependendo de qual lado se posicione.


As irmãs jantando com um dos homens com os quais marcavam encontros. Uso de filtro na imagem.



“O mundo anda tão depravado...” Piscando os cílios longos, com uma presença ingênua, Marie comenta com sua irmã, em um longo suspiro. Apresento-os Marie e Marie, no exato momento em que decidem se adequar ao mundo sendo depravadas. Desde então, essa dupla assume atitudes de deixar a moral tradicional descabelada: saem com homens mais velhos para que estes lhes paguem jantares caros, comem com gula em um país atingido pela fome, furtam, são as rainhas do desperdício e da manipulação. Fazem do mundo o seu palco e nele encenam uma história sem limites, um espetáculo capaz de gerar amor ou ódio do público, dependendo de qual lado se posicione.

O filme tcheco, “As pequenas margaridas”[1], de Vera Chyntilová, tornou-se uma referência no estudo do cinema. Constituí o filme expoente da nouvelle vague tcheca[2], também conhecida como “o milagre do cinema da Tchecoslováquia”, movimento cinematográfico que assume características comuns a nouvelle vague francesa como a criatividade, narrativas desconstruídas acompanhadas de cortes bruscos, experimentação do tempo e do espaço no ambiente fílmico e o desafio às convenções típicas da produção cinematográfica. O milagre tcheco corresponde a uma onda criativa inesperada, filha de um momento histórico em que Tchecoslováquia, vivendo um regime totalitário socialista, dificultava a produção artística com a falta de incentivos e rigorosas leis de censura a tudo aquilo que não reproduzisse a mentalidade comum imposta pelo regime totalitário.


Representação da “Virgem Maria”. Marie enrolada em uma cortina na cena do banquete final.



“As pequenas margaridas” tem seu enredo construído a partir das aventuras e atitudes das duas Maries, personagens fundamentais a compreensão do filme. Uma Marie, a loira, vestida sempre de roupas claras e levando uma coroa de flores na cabeça, representa um lado virginal – “oh! Você derramou leite no peito. Mas sabe, ficou bem em você”, escuta da sua irmã, fala que fortalece a visão da virgem. A outra Marie, morena, vestida em cores escuras, quase sempre em vermelho, representa um lado erótico. São alegorias dos estereótipos atribuídos às mulheres, sempre Marias: Virgem Maria ou Maria Madalena[3]. Se as Maries são de fato irmãs, ou se são amigas muito próximas, não temos dados para aferir, esta contextualização é ausente no filme. Gosto, porém, de pensar que as Marias, mais que irmãs, ou garotas que decidem escapar da perspectiva cotidiana, são ninfas, no auge do seu potencial dionisíaco. Se não ninfas, possuem, ao menos, um lado místico. É recorrente a fala: “Marie, você não é desse mundo”, acompanhada de cortes bruscos que dão a sensação de imortalidade (nunca se machucam, se transmutam de uma cena a outra), além da possibilidade de estarem se tornando invisíveis ao final do filme, são características que se cumulam reforçando a ideia de uma existência mística.

O místico é chave para situar o filme no seu contexto histórico e entender, talvez, uma das intenções de Vera Chyntilová (diretora de “As pequenas margaridas”). Rodado em 1966, a época de um regime totalitário socialista, o filme entra em confronto direto, quiçá intencionalmente, com a forma de fazer arte consagrada pelo regime: o realismo (aqui, incluem-se filmes que seguem a tradição do cinema verdade, etc.); uma vez que as margaridas assumem características inumanas e são afastadas de uma contextualização política (estão longe de serem personagens engajadas, trabalhadoras), se distanciam da imagem do herói típico do realismo, sempre aquele que contribui para a utopia de um sistema socialista igualitário e perfeito.


Irmãs brincando nos trilhos do trem.


Não só o sobrenatural é uma afronta ao cinema realista, o excesso com que a diretora constrói o filme, abusando de filtros, alternando as cenas entre colorido e preto e branco, exagerando no uso de imagens de banquetes, fugindo de uma narrativa linear, faz oposição direta a uma forma mais “contida” de fazer cinema. Esse excesso gerou crítica por parte inclusive de grandes diretores, como Jean-Luc Godard que a época interpretou esse maximalismo no sentido de um culto a forma de pensar capitalista, regada pelo desperdício e o descontrole no consumo. Em pequenas brincadeiras, a diretora conecta a linguagem da fala das personagens com a lógica formal do filme: “Cigarro com filtro?” – uma das irmãs diz, enquanto as imagens em filtros diferentes passam alternadas.

O filme é subversivo também em outro aspecto: é, em essência, surrealista. Recheado de alegorias e simbolismos, em uma lógica absurda, as relações de poder se invertem, e as mulheres, antes oprimidas, passam a ser opressoras – se aproveitam de velhos burgueses que as procuram na intenção de manipulá-las, na esperança da troca de jantares por favores sexuais, mas que acabam manipulados. Ambas passam o máximo de tempo sentadas a mesa comendo para distraí-los do horário em que pegariam o trem, não precisando, assim, cumprir a expectativa dos homens. É um filme feminista? Os homens são objeto de gozação para as irmãs, são reduzidos a seres estúpidos que exaltam as mulheres, como se essas estivessem dotadas de um potencial místico. Zombando do culto que lhes é oferecido, as irmãs lotam as paredes, o teto e o próprio corpo com os telefones de homens manipuláveis por um olhar ingênuo. Em outra cena, após receberem uma ligação de um homem que se diz Romeu, as irmãs recortam frutas, salsichas, em uma diversão eufórica, simbolizando a castração. Em “As pequenas margaridas”, as mulheres devoram, invertem a lógica do jogo.

A mais pungente de todas as afrontas ao realismo, quem sabe seja o posicionamento das nossas anti-heroínas frente à obrigação do trabalho. Elas vivem entediadas, zombam da noção do trabalhador honesto, zombam de um dogma, são jovens que querem exercer a liberdade de não trabalhar sem deixar de existir por isso:

“Marie 1: - Quem pode dizer que nós existimos? Que VOCÊ existe?

Marie 2: - Você, claro.

Marie 1: - Precisamente. Por outro lado, você não está em nenhum lugar! Escuta, você não está trabalhando em nenhum lugar, você não está registrada em nenhum endereço... Então veja, não há provas em nenhum lugar que você exista!”[4].

Em outra cena, dizem a uma trabalhadora (responsável por limpar um banheiro) que estão “muito ocupadas para trabalhar”, acrescentaria vivendo a juventude. Ou, quando estão no campo, vendo um agricultor, travam o seguinte diálogo:

“Marie 1: - O que ele está fazendo? Regando?

Marie 2: - Ai! Que vida boa!

Marie 1: - Vida boa? Acordar cedo assim?”[5].

O que é emprego fixo? Durante uma briga, as irmãs flexibilizam, zombam da definição de trabalho: “eu tenho emprego fixo, sua cabeça de vento”, a irmã morena diz para a outra, se referindo aos encontros com os homens mais velhos.

A comida é, literalmente, o fruto do trabalho, as irmãs não só não trabalham como comem com gula em um país atingido pela fome. Mas a fartura pertence a quem? De quem elas devoram? Dos únicos que detém alimentos em abundância, os alto-oficiais do partido. Em tom ácido, Vera Chyntilová lembra um dogma do comunismo, de que a abundância é para ser compartilhada.

A comida é também uma metáfora em relação ao cinema velho. Famintas, elas devoram o cinema de antes. Comem, destroem, pisoteiam as regras do fazer cinema (cena final, banquete) e quando se propõem a arrumar a bagunça, é impossível restituir as coisas ao seu estado original – os pratos quebrados, não voltam a ser inteiros.

O filme dentro do filme é trazido não somente pela metáfora da comida; quando as personagens começam a recortar e colar pedaços de revista e até partes do corpo, em uma estética surrealista, remetem ao trabalho de montagem da película e, mais uma vez, ligam a história do filme a suas formalidades técnicas, ressaltando o trabalho bem feito dos cortes que permeiam o filme, por vezes um tanto bruscos, coisa que, como já exposto, recorda a nouvelle vague francesa.


Maças, jardins... O éden paira na atmosfera de “As pequenas margaridas”, inúmeras são suas referências visuais. As irmãs viram depravadas desde que experimentam a fruta de um jardim exposto no início do vídeo. É intrínseco ao conhecimento a perversão? É o fruto que faz delas capazes de manipularem os homens? São tão divinas que se alimentam dia a dia do conhecimento? Ou são elas a representação do fruto? Muitas vezes brincam: “estamos amadurecendo” ou “ainda não amadurecemos direito”. São questões sem resposta, mas certo é que a metáfora do éden chama a uma investigação mais aprofundada. As irmãs brincam com o fogo, incendeiam e, o que é o fogo senão o conhecimento dos deuses? Mais um indício da importância do significado do conhecimento para análise do filme.




Ambas provam da fruta proibida, se retomarmos os estereótipos do gênero (Virgem Maria e Maria Madalena), porque não assumir que as Maries são espelhos uma da outra? As irmãs, ao invés de irmãs, podem ser unas. Uma mulher, com uma só essência, independente das diferenças aparentes. Teríamos, assim, uma só personagem, coisa que subverteria nossos próprios sentidos, dentro da lógica surrealista.

Dentro da complexidade e riqueza que nos traz “As pequenas margaridas” poderíamos desdobrar mais um traço da montagem: sua perspectiva dadaísta. O dadaísmo invoca a colisão radical entre signos díspares na ordem artística[6]. É a arte anárquica, revolucionária. Assim, trabalha Vera Chyntilová na escolha da trilha sonora, decidindo por estilos musicais incongruentes entre si: jazz e rock and roll em colisão com músicas clássicas, coral e músicas medievais. Quem sabe, mais um indício do novo avançando sobre o velho.

Tanto discorremos sobre o filme, mas não no tocante ao seu nome. Por que a escolha de “As pequenas margaridas”? Por que Margaridas? As pequenas gulosas comem como monstros, mas são delicadas, seguindo um estereótipo de gênero. As margaridas são flores delicadas e bonitas, mas suas pétalas se assemelham a pequenos dentes.

Passada essa curiosidade, voltemos ao filme; terminada a cena do banquete final, a penúltima tomada nos mostra as irmãs pedindo socorro na iminência de se afogarem, mas são ignoradas. Há quem diga que este final representa o destino de Vera Chyntilová, prevendo a rejeição pelos órgãos de censura do seu filme. De fato, Vera foi exilada, sendo proibida de gravar na Tchecoslováquia por um período relevante de tempo.



A frase mordaz: “esse filme é para aqueles que se incomodam com algumas saladas pisoteadas”, encerra o filme, acompanhada de imagens de detonação de bombas. O que simbolizam as bombas? Há, aqui, controvérsias entre aqueles que analisaram o filme. Há quem diga que, as bombas são o produto do trabalho e das convicções dos homens que as margaridas rejeitaram. Também há quem assuma que, desde que as irmãs decidiram ser depravadas e a morena pôs em prática tal decisão dando um tapa na irmã (primeiro ato de depravação), elas abriram a caixa de pandora, foram as responsáveis pelos desastres do mundo. Outra corrente defende que, as irmãs, desde que decidiram ser boas garotas (“nós não queremos mais ser depravadas”), aumentaram o potencial destrutivo do mundo, porque a aparência de bom trabalhador sob uma essência destrutiva seria o pior para o mundo e a justificativa da criação de bombas tão destrutivas quanto à bomba atômica. Por outro lado, me inclino a pensar de maneira mais simples: as tomadas de detonação de bombas não aparecem somente no fim da película, aparecem também no início, intercalada com a imagem de engrenagens em funcionamento, logo, o que representaria essas imagens além do exemplo máximo da depravação humana, que é a engrenagem que move o mundo? As Maries são tão depravadas como sugerem? Ou existe depravação maior do que “algumas saladas pisoteadas” e a subversão de algumas regras sociais? As bombas não seriam uma forma real de depravação?


Marie após levar ser agredida pela irmã. Primeiro ato de depravação das irmãs.


“As pequenas margaridas” na definição de Vera Chyntilová é “uma comédia feminista de humor negro sobre o estupro”[7]. Na certeza de se tratar de um filme irônico e complexo, recomendo-o como um dos grandes filmes do cinema. Com excelência técnica, delicadeza, mas grande profundidade, uma vez visto, “As pequenas margaridas” se transforma em um dos filmes que guardamos como carinho, como um dos clássicos que nos deram uma aula prática de cinema, nos deixando um tantinho mais apaixonados pela 7º arte.

Por Ana Paula Ricco Terra


LINK PARA DOWNLOAD DO FILME: http://filmescult.com.br/as-pequenas-margaridas-1966/


Fontes:

BERGAN, Ronald. “...ismos para entender o cinema”. São Paulo: Editora Globo, 1ª ed.

SOUKUP, Katarina. “Banquet of profanities: food and subversion in Vera Chyntilová’s Daisies”. Disponível em: http://tessera.journals.yorku.ca/index.php/tessera/article/viewFile/25123/23317

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 10ª ed.

https://avantcinema.wordpress.com/2010/08/17/as-pequenas-margaridas-vera-chytilova/

https://revistausina.com/2014/08/16/pequenas-margaridas/

http://segundo-plano.com/as-pequenas-margaridas-1966/

http://historyofcinema.qwriting.qc.cuny.edu/2011/03/07/confusing-daisies/






[1] É mais comum encontrar o filme a partir de seu título em inglês, daisies.


[2] Ou czechoslovak new wave.


[3] Análise presente na obra de Judith Butler, quando se aprofunda nos estereótipos de feminilidade.


[4] Tradução livre.


[5] Tradução livre.


[6] Como o exposto no artigo de Katarina Soukup.


[7] Black, feminist comedy about rape.


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