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A máquina de fazer espanhóis



“Não tenho mais prazer na vida/ não pretendo mais amar/ o meu destino é esse/ meu consolo é chorar”. Ao compor os versos acima, José Ribeiro, 89 anos, relatava o "martírio sem fim" de uma desilusão amorosa. Mas as palavras da música se encaixam em sua atual situação e na de muitos outros idosos em rio preto. Foram esquecidos ou abandonados por familiares nos asilos das cidades. Dos 309 moradores de cinco abrigos filantrópicos rio-pretenses, 112 não recebem mais visitas de parentes. ” Como demonstra o trecho retirado de uma matéria do diário da região – São José de Rio Preto-, a maior parte dos moradores dos asilos, foram abandonados. “Mas também né, idoso já deu o que tinha que dar! a vida de todo mundo é tão atribulada e eles só ficam lá atrapalhando.” Infelizmente, pensamentos como estes estão presentes em larga escala na sociedade contemporânea, que tem como uma de suas marcas a invisibilidade do idoso. É justamente para pensar a condição do idosos, que a leitura de “a máquina de fazer espanhóis” de Valter Hugo mãe, se faz necessária. Provavelmente muitos dos leitores se perguntarão diante do objeto da minha recomendação: afinal de contas, têm tanta coisa acontecendo no mundo, como a questão do impeachment, a condição dos refugiados, os conflitos no oriente médio e esta menina falando sobre idosos !. sim, caro leitor, é exatamente na análise de problemas “menores”, por exemplo, como a sociedade trata o idoso, reduzindo tudo ao seu valor, econômico que nós chegamos a compreensão dos grandes problemas, como as guerras. Me lembrando da frase de um certo ministro japonês, taro aso, que declarou que os idosos em estado terminal deviam se “apressar e morrer” para poupar gastos do governo com a saúde pública.

A” máquina de fazer espanhóis” do escritor angolano residente em Portugal desde a infância, Valter Hugo mãe, conta a história de António jorge da silva, de 84 anos, que após a morte da sua esposa, é levado pela filha para morar no asilo feliz idade. De acordo com Lourenço Mutarelli “ o livro é o reflexo e a reflexão desse homem, que percebe que a velhice não traz sabedoria nenhuma, e o que se atinge é o esquecimento, a imprecisão e o remorso. O velho também é uma máquina desgastada.” Silva, ao chegar ao feliz idade, constata que a velhice está longe de ser a melhor idade e “ enquanto caminha para o pó “ precisa lidar com sentimentos como rejeição, a solidão, o remorso e a saudade, sentimentos que arrematam a todos no fim de sua travessia.

um dos aspectos da obra que mais chama a atenção do leitor, é o fato de que a velhice é abordada de forma crua, despida de romantismo e idealização. nela, o idoso não é visto como aquele ser cheio de sabedoria que está aproveitando a melhor fase da vida, porque como diz antonio jorge da silva: “e só não nos tornamos perigosos porque envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas.”


Ao lado da velhice, que é o tema central da obra, mãe trata de temas como esquecimento e memória política. A personagem principal foi jovem no momento em que Portugal passava por uma ditadura, no estado novo, e sua velhice coincide com o momento de redemocratização do pais. A vivência de períodos tão distintos aumenta o conflito da personagem, que na velhice precisa arcar com as consequências de suas ações no período anterior, de supressão dos direitos individuais, quando muitos valores do fascismo foram incutidos a força na população. Mãe possui o cuidado de em sua obra ressaltar a importância da memória, para que ideologias hediondas e inaceitáveis não voltem a ressurgir. tal preocupação pode ser constatada no seguinte trecho: “sabe, senhor silva, é preciso que se suje o nome de Salazar para todo o sempre. É preciso que o futuro lhe reserve sempre a merda para seu significado, para que os povos se recordem como foi que um dia um só homem quis ser donos da liberdade humana, para que nunca mais volte a acontecer que alguém se suponha pai de tanta gente. Este tem de ser um nome de vergonha. O nome de um porco. Para que ninguém, para a esquerda ou para a direita, volte a inventar a censura e persiga os homens que têm por natureza o direito de serem livres”. A preocupação de mãe é muito atual, podendo ser aplicada no brasil, em que durante manifestações contra o governo vigente, houve pedidos de intervenção militar.

Os leitores mais atentos devem estar me acusando de cometer erros ortográficos básicos ao escrever o texto inteiro com letras minúsculas. Mas não se preocupem, a minha intenção foi a de seguir os passos de Valter Hugo mãe, cuja a obra inteira foi escrita com letra minúscula. Com este artifício, o autor teve a intenção de chamar a atenção para a natureza oral do texto e recondução da literatura a liberdade primeira do pensamento. As letras minúsculas também fazem alusão a uma ideia de igualdade, deixando a cargo do leitor o que deve ou não ser colocado em letras maiúsculas. Há também uma referência a João Cabral de melo neto. o tão famoso somos todos severinos- obra “morte e vida severina”, foi substituído por mãe por somos todos silva. Antonio Jorge da Silva em um determinado trecho expressa o seguinte pensamento: “Somos todos silvas neste pais, quase todos. crescemos por ai como mato , é o que é. como as silvas. Somos silvestres, disse eu “. é interessante observar que no livro há um contraste entre dois silvas, um deles é o Antonio jorge da silva, que enxerga Portugal como pais periférico, que está longe de ser um pais industrializados. E o outro é o Silva da Europa, personagem que possui uma visão otimista em relação a Portugal, é progressista, acreditando que Portugal está em rumo da industrialização, se igualando aos outros países da Europa e finalmente fazendo parte do continente: “ e um dia ainda deixaremos de ser silvestres, agrestes, isso de ir como o mato, porque estaremos cada vez com melhores maneiras, sofisticados e cheios de nuances de interesses, subtilezas como as que assistem aos grandes caracteres. Um dia, caramba, estaremos até cheio de razão. ”

Outro tema presenta na obra é a metafísica. O autor, por meio do poema tabacaria de Fernando Pessoa, nos faz questionar se é possível viver sem metafísica. Como aborda Lourenço Mutarelli “é possível viver sem a metafísica? Esta ausência transforma a imagem da mãe de cristo, posicionada num canto do quarto de silva, numa simples boneca- mas a boneca é um brinquedo e o brincar talvez seja portador de uma certa magia transformadora e, no limite, pura metafísica.”

Diante disto, queridos leitores, não sei se somos todos severinos, se somos todos silvas, mas sei que a terceira idade está no horizonte de todos, os desafios que ela representa também. Sei que os nossos sentimentos em alguma coisa vão se assemelhar aos do senhor Pereira, da dona Marte – que precisa conviver com o abandono e a morte-, da dona Leopoldina, do seu Anísio, todos moradores do feliz idade que precisam lidar com inimigos em comum, o corpo; “o nosso inimigo é o corpo. Porque o corpo é que nos ataca. Estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. Que decide que é chegado o momento de começar a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo de dor ou loucura. Pois eu tenho cem anos e podia quase ser vosso pai quero dizer-vos que ser-se velho é viver contra o corpo. O estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais. A violência na terceira idade”; o sentimento de rejeição e solidão. Caso não queiram fazer a leitura por causa da estrutura textual enigmática de mãe, de sua preocupação com a memória, de suas reflexões acerca da metafísica, o façam para compreender como é difícil a situação daqueles que vão se tornando invisíveis com o tempo e que sentem que: “se deixarmos de pensar estamos enterrados”. Um ganho adicional desse esforço é tornarmo-nos mais sábios para enfrentar nossa própria velhice.


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