top of page

A CONQUISTA DO INÚTIL

UMA PEQUENA HISTÓRIA

Brian Sweeney Fitzgerald, também chamado “Fitzcarraldo”, tinha um sonho: no início do século XIX, desejava construir um teatro de ópera no meio da selva peruana. Determinado a fazê-lo, pôs tudo o que tinha em risco e, como não dispunha de recursos financeiros suficientes para realizar o seu objetivo, elaborou um plano audacioso para arrecadar a quantia necessária. O irlandês, que já tinha fracassado no seu projeto de construir uma ligação ferrovia nos Andes, decide entrar para o ramo da exploração da borracha que era tão lucrativo na época


Fitzgerald comprou, então, terras na região do rio Uyacali próximas a Iquitos no Peru para dar cabo à sua nova atividade. Contudo, a propriedade estava isolada, pois havia o obstáculo das corredeiras que impediam a navegação fluvial até o local. Sem um meio de transportar a borracha rio abaixo, não conseguiria vendê-la, seria inviável a exploração. Além disso, a região era conhecida por abrigar índios hostis ao homem branco.


Apesar de tudo isso, ao analisar a geografia do local, Fitzcarraldo percebeu que, em um determinado ponto do rio Pachtea, uma pequena faixa de terra o separava do rio Uyacali. Assim, bolou um plano para chegar com a sua embarcação ao outro lado do rio: iria erguer um navio de 320 toneladas por cima de uma colina. Uma vez lá, montaria uma infraestrutura que permitira a viabilidade da exploração da borracha.


UM GRANDE FILME

Baseado nessa história real, o diretor Werner Herzog (1942-), conhecido por filmes como “O Enigma de Kaspar Hauser” (1974), “Woyzeck” (1979), “Nosferatu – O vampiro da noite” (1979) e “Aguirre, a cólera dos deuses” (1981) escreveu e dirigiu o filme “Fitzcarraldo – O preço de um sonho” (1982) onde é retratado o episódio em que uma personagem icônica atenta contra as forças da natureza e testa os limites do ser humano.


A película tem a duração de 158 minutos, é encenada em inglês, com equipe técnica majoritariamente alemã e o local de filmagem é o próprio Peru. Estrelam o longa metragem o complicado Klaus Kinski como “Brian Sweeney Fitzgerald – Fitzcarraldo” e a bela Claudia Cardinale como a esposa de Fitzcarraldo, “Molly”. Também está presente a performance de José Lewgoy como “Don Aquilino”.


“Fitzcarraldo – O preço de um sonho” (1982) foi premiado com a prata pelo melhor filme no festival alemão de cinema, foi nomeado para o prêmio BAFTA de melhor filme estrangeiro, também foi candidato a Palma de Ouro do Festival de Cannes e o Globo de Ouro pela mesma categoria. No ano de lançamento do filme, Werner Herzog foi agraciado com o prêmio de melhor diretor no festival de Cannes.


Além da bela fotografia e sonografia presente em uma estrutura narrativa peculiar, é possível dizer que o filme se tornou importante para as artes por duas razões principais. A primeira, é a de que ele denota reflexões sobre o ser humano e a natureza, tais como a subjugação da natureza pela cultura do homem, quais as limitações do ser humano para satisfazer suas ambições, o convívio da natureza com os homens e o que os nossos sonhos dizem de nós mesmos, entre outras.


A segunda razão para que o filme tenha tanta importância é que ele é conhecido por ser um dos filmes mais difíceis de terem sido produzidos de todos os tempos. Mortes de membros da equipe técnica, dificuldades financeiras e relativas à montagem de algumas cenas, rebeldia de atores, exploração de povos tradicionais e incertezas quanto à viabilidade do projeto cinematográfico assombraram a produção do começo ao fim.


DA HISTERIA DE KINSKI À GRANDEZA

Conhecer as peripécias pelas quais passou a produção do filme, embora não seja o que consideramos mais importante em uma análise da obra em questão, certamente nos ajuda a entender melhor o motivo do fascínio que o cinema do diretor Werner Herzog tem gerado, além de nos agraciar com os elementos que serão articulados nas nossas reflexões mais adiante.


O maior desafio que Herzog encontrou foi um dos que tomou para si, a escalação de Klaus Kinski para interpretar o personagem principal Fitzcarraldo em seu longa de nome homônimo. Depois de tentar contratar o ator Jack Nicholson para ser o protagonista e tentar substituir Kinski por Mick Jagger ou Jason Robards, pareceu melhor tentar concluir a empreitada.


Klaus Kinski (1926-1991) foi um ator alemão muito prestigiado pela qualidade da sua atuação, que recebeu prêmios importantes nos Estados Unidos da América e na Alemanha e era conhecido por ter um temperamento difícil. Participou de produções americanas importantes como o filme “For a Few Dollars More” (1965), o “Nosferatu – O vampiro da noite” (1979) e “Cólera dos Deuses” (1981), sendo essas duas últimas obras colaborações com o diretor Werner Herzog.

O ator impôs muitas dificuldades às filmagens. Além de se recusar a fazer algumas cenas, não aceitava ser dirigido por Herzog. Kinski insultava os membros da equipe técnica e entrava em longas discussões aos berros com a equipe. Um simples gesto que o desagradasse ou erro era o suficiente para que o ator berrasse com os seus colegas durante horas, tornando extremamente difícil a execução do projeto.


De acordo com Herzog[1], o ator gritava, ameaçando agredir a todos, ao que a equipe ficava em silêncio e esperava com que a estrela se acalmasse. Índios peruanos que foram “recrutados” para ajudar na produção e atuar no filme se escondiam quando o ator entrava em estado de fúria. Esses povos tradicionais teriam dito que o que os assustava era o fato de a equipe não fazer nada contra os berros do ator e também, em certo momento, se ofereceram para matar Klaus Kinski. Esses episódios levaram à produção de um longa por Werner Herzog em que ele trata da sua relação com o ator[2] e à publicação de um livro em que o diretor expõe seus diários de filmagem[3].


Não bastasse essa dificuldade, a equipe teve de lidar com um incêndio no seu acampamento provocado por índios que não estavam de acordo com as filmagens, além de enfrentar muitas desistências por parte do elenco e dificuldades técnicas causadas pelo ambiente da selva peruana[4]. Também houve um acidente aéreo em que membros da equipe faleceram.


Tantos eventos inoportunos não puderam impedir, no entanto, que a equipe ainda travasse uma outra batalha, a da realização da cena em que um navio de 320 toneladas é içado montanha acima, sem efeitos especiais. Essa cena que marcou a história do cinema foi feita com o auxílio do povo indígena Ashaninka, assim como na história original Fitzcarraldo teria conseguido o seu objetivo explorando a força de trabalho indígena.[5] Foram usados, na filmagem, cabos de aço e um trator para modelar o terreno, além de outros equipamentos. Herzog encontrou também o obstáculo de que, segundo ele próprio, o financiamento do projeto só liberaria a verba necessária para içar o navio, se o diretor provasse que era possível fazê-lo, o que era muitíssimo difícil, pois era preciso primeiro dinheiro para poder içar o barco.[6]


CONQUISTADOR DO INÚTIL

Como pudemos demonstrar, fica clara a dificuldade encontrada pela equipe e pelo chefe do projeto em completar a tarefa estabelecida. Nesse ponto, nos parece, as figuras de Werner Herzog e o Fitzcarraldo original se confundem. Ao tentar rearticular elementos para contar o feito do irlandês, o alemão acaba por realizar uma façanha de magnitude similar. Esse ato grandioso encontra a proximidade máxima com o seu antecessor em sua motivação: conseguir sucesso em sua empreitada. Temos que, fazendo o que Fitzcarraldo fez, Herzog o interpreta, assume o seu papel, de certa forma, pois agir de qualquer outra maneira que não a compulsão doentia para realizar seus objetivos, não permitiria o “sucesso” almejado.


Essa grandiosidade é que gera o fascínio por “Fitzcarraldo” da parte de muitos apreciadores da sétima arte. Isso nos faz sugerir, repetindo que o fascínio que se encontra nos dois motivos principais que conferem importância à essa obra: a grandeza de sua história e a grandeza da sua produção. Nessa esteira, esse fascínio encontra-se na figura de Fitzcarraldo, tanto o fictício como o real, e na figura de Herzog quando mimetiza o protagonista, por conseguinte.


Mas, perguntaria o mais niilista, por que grandeza? A que ela serve ou de que vale? De que isso importa? Por que, então, Herzog dá um desfecho diferente do real à sua obra? Serão ambos inúteis, conquistadores dele? Para respondermos adequadamente, faz-se necessário falar um pouco mais sobre Herzog e a indagações que estão por trás do seu fazer-filme.


O diretor é muito criticado a respeito do fato de que, por vezes, modificaria os fatos, o real, em sua cinematografia, ao que o autor responde em várias entrevistas, que apenas intensifica determinados eventos[7] e que o conjunto de fatos não leva a uma verdade.[8] Alguns criticariam o fato de que ele alteraria a história original de Fitzcarraldo que, ao invés de ter um final alegre com cantores de ópera em seu navio, teria tido uma morte misteriosa logo após transferir com sucesso o seu barco para o rio Uyacali.


Primeiro, ao gênero documentário. Herzog é questionado quanto à confiabilidade de seus documentários, pois eles estariam “distorcendo a realidade”. É interessante a resposta que o mesmo dá em uma entrevista[9] a tal acusação. Segundo o diretor, se a objetividade necessária para retratar apenas “fatos” existisse, não haveria literatura ou outras formas de arte. Isso, porque, diz ele, que se tentasse retratar fatos (e, adicionamos, fosse possível tratá-los sem subjetividade), a literatura, por exemplo, seria a lista telefônica de Manhattan. Essa lista teria quatro milhões de números de telefone, todos corretos, e nenhuma outra informação sobre eles.

Tentando interpretar essa passagem, e dessa forma, expandindo o que podemos entender dessa lógica expressada pelo diretor, temos que a objetividade, se possível, esgota a arte. Não há nada mais o que dizer, senão o que está dito de forma descritiva de forma “objetiva”. Não faz sentido a expressão para o dizer o que não se discute, o “fato”, basta a descrição.

Dessa forma, pedimos desculpas ao leitor se isto o incomoda, mas faremos referência, nesse ponto, a outra entrevista dada pelo diretor.[10] Faremos dessa forma, pois o pensador que estamos analisando, nesse momento, não é escritor profissional (apesar de ter escrito um livro), crítico de arte, cientista ou filósofo e, assim, não tem vasto material escrito, mas muitas horas de material audiovisual para análise.


Nessa entrevista, o diretor fala que os ideais e crenças dele não importam para sua arte,[11] pois as formas de expressão, as artes, tem a ver com a articulação de ideias. Enquanto o diretor possui certas concepções sobre o seus projetos, os espectadores terão outra, que é diferente, pois o artista, quando exerce sua atividade, em seu papel de autor, não articula como um espectador, seguindo o raciocínio de Herzog nessa feita. Representam papéis diferentes o autor e o espectador, o que cabe a cada um é articular ideias à sua maneira, ou então o ser humano não passaria de um animal, seria “como uma vaca no pasto”.[12]


Mais uma vez nos voltamos para a questão da grandiosidade e o fascínio que o filme em questão é capaz de produzir. Seguindo a lógica recém demonstrada, temos que o papel do espectador seria o de articular ideias, para nós basta criar sentidos, criar desafios e superá-los, ver beleza e realizá-la. Isso é grandiosidade. Cabe a cada um, dessa maneira, fazer como Fitzcarraldo, quando foi chamado de sonhador e “conquistador do inútil” ao revelar seus objetivos aos barões da borracha há quase 100 anos, no começo do século XX: articular ideias, conquistar o inútil em um mundo onde a objetividade não é uma expressão possível.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=Ai4ZDUNycec

[2] A película a que nos referimos chama-se “My Best Friend” (1991).

[3] O livro a que nos referimos chama-se “Conquista do Inútil”.

[4] http://www.imdb.com/title/tt0083946/

[5] No início do projeto, um engenheiro brasileiro teria se demitido em razão desta tarefa que lhe foi apresentada. http://www.imdb.com/title/tt0083946/

[6] https://www.youtube.com/watch?v=cYWEMX7juPw

[7] https://www.youtube.com/watch?v=64qu1mdl5R8

[8] https://www.youtube.com/watch?v=zTVlifTAdlM

[9] https://www.youtube.com/watch?v=64qu1mdl5R8

[10] https://www.youtube.com/watch?v=cYWEMX7juPw

[11] Algo que poderíamos considerar paradoxal em relação a esta análise.

[12] https://www.youtube.com/watch?v=cYWEMX7juPw

Bibliografia

Carlos, Cássio Starling. Werner Herzog: Fitzcarraldo. São Paulo: Moderna, 2011.

Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

Herzog, Werner. Conquista do inútil. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

Posts Recentes
Siga
  • Pinterest Long Shadow
  • Google+ Long Shadow
  • RSS Long Shadow
  • Facebook Long Shadow
  • Twitter Long Shadow
  • YouTube Long Shadow
bottom of page