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Terra Sonâmbula do Mia Couto- Um poeta que escreve em prosa


“Problema é deixar este escuro entrar na cabeça da gente. Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir “. Caro leitor, assim como o velho Tuahir aconselha o menino Muidinga a embarcar no mundo da leitura, eu os convido a vivenciar uma experiência transcendental por meio do livro Terra Sonâmbula do escritor Mia Couto. Terra Sonâmbula, como uma caixinha de surpresas, é repleto de histórias que se cruzam e se relacionam com a história central. Dois personagens de destaque são o Tuahir e o Muidinga, um velho e um miúdo, que vivem em um Moçambique assolado pela guerra civil, em uma terra que sangra. A caminhada possui fim quando os dois companheiros encontram um ônibus incendiado e o fazem de refúgio temporário. Dentro deste ônibus se deparam com uma maleta, em que, em meio ao seu conteúdo, está um diário composto por 12 cadernos, são os cadernos de Kindzu. O velho e o miúdo para evitar que o escuro entre em suas cabeças, passam a ler estes diários, a conhecer a história de Kindzu, das personagens que passaram por sua vida e até mesmo do próprio miúdo.

Terra Sonâmbula devido à linguagem poética de Mia Couto, muito similar a empregada pelo Guimarães Rosa, nos transporta para um universo onde a escrita possui infinitas formas; em que a língua portuguesa pode ser trabalhada, estruturada, reinventada para expressar de maneira fiel os sentimentos das personagens, que só o poderiam ser traduzidos por meio daquelas falas tão meticulosamente trabalhadas. Para demonstrar a grandeza da linguagem oral, que é a utilizada pelas personagens, Mia Couto não poupou recursos estilísticos . Há a presença de diversos substantivos que foram transformados em verbos, como: “focinhando”, “sombrear”, “cabritoteava”, “bumbumdava”, “covar”, entre outros, nos deixando envoltos em uma bolha de encantamento. Comparações e metáforas bem construídas fazem com que nos coloquemos no lugar das personagens e sintamos os seus medos e anseios, como no trecho a seguir: “É um desses negros que nem os corvos comem. Parece todas as sombras desceram a terra. O medo passeia seus chifres no peito do menino que se deita, enroscado como um congolote”. Leitor amigo, aposto que após este trecho, você também foi capaz de sentir os chifres do medo ! O encantamento proporcionado pela oralidade permeia diversos fragmentos. Os neologismos responsáveis por nos transmitir com mais eficiência a condição de vida das personagens e da África, também estão contidos na narrativa.


Aposto, que até esta parte da recomendação muitos leitores estão me olhando de esguelha e pensando “este livro deve dar atenção ao plano da forma em detrimento ao do conteúdo, não vale a pena lê-lo! “É especialmente para estes leitores que escrevo os parágrafos que se seguem.


Frases carregadas de sensibilidade, com percepções da alma humana, que cutucam as nossas feridas. Frases que nos desnudam a alma. São as espécies de frases que vamos nos deparar com a leitura de Terra Sonâmbula. Então para que o coração de vocês já esteja preparado, vou citar alguns exemplos: “ Quem, neste mundo, dá validade a uma criança ?”; “ Eu gosto de homem que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu”; “ Quem não tem amigo é que viaja sem bagagem”; “ “ A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco”. A obra se estrutura com base em um realismo fantástico; este porque a narrativa é contada como uma fábula, envolta em um universo onírico; e aquele porque as personagens experimentam sentimentos reais, vivendo em um cenário marcado pela guerra que não permite o esquecimento de suas condições. Elementos da cultura africana; das crenças e ditados populares são utilizados para explicar situações vividas pelas personagens, nos transmitindo a sensação de estarmos ouvindo tudo ao redor de uma fogueira.

Terra Sonâmbula foge do estereótipo de uma África mistificada, aquela do “Rei Leão” , exótica, habitada apenas pela natureza e pelos animais. A África do Mia Couto é real, uma terra que sangra, que sofre com os resquícios do imperialismo, uma terra em que as guerras e o sofrimento fizeram com que todos se perdessem “ Aquele grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também. Já não eram sábios mas crianças desorientadas. Mais que ninguém, eles sofriam a visão da terra em agonia. Cada casa destruída tombava em ruína dentro de seus corações. As mãos do professor sangravam dentro do peito do mais velho. Aquela guerra não se parecia com nenhuma que tinham ouvido falar. Aquela desordem não tinha nenhuma comparação, nem com as antigas lutas em que se roubavam escravos para serem vendidos na costa”.


Terra Sonâmbula também traz uma preocupação política ao retratar um Moçambique que sofreu uma luta de dez anos pela sua independência em relação à metrópole portuguesa e ao conseguir entrou imediatamente em uma guerra civil, em que grupos capitalistas tentavam derrubar o governo marxista; grupos que tentavam roubar pedaços daquela terra, em um cenário de influência da Guerra Fria. Mia Couto fala sobre coisas que não podem ficar em silêncio. Não podem ficar em silêncio pois são vitais para que os moçambicanos saibam quem são.


Um aspecto da obra que faz com que não desgrudemos os olhos por um instante é que o escritor ressalta a importância da história, tanto das personagens como da terra, que em um Moçambique onde o índice de analfabetismo é muito grande, são contadas pela tradição da oralidade. Ao longo da obra as personagens tem a necessidade de contar sua história, como se esta ação pudesse libertá-las, ajudar na construção de sua própria identidade. Por meio destas histórias, Mia Couto parece demonstrar a importância de um povo de conhecer a si e a sua terra. A leitura das diversas histórias são tão inspiradoras, que ficamos com vontade de contar a nossa própria !


Mia Couto é um poeta que escreve em prosa. Pensa o país por meio da fabulação, nos transportando para um universo único, recheado de aventuras e reflexões. Na tarefa de pensar o país por meio da fabulação, a história das personagens ficam intrinsicamente ligadas a da terra. Há a presença de comparação entre os sentimentos de ambos.


Um elemento encantador, é que Terra Sonâmbula, mesmo retratando uma terra sofrida, em agonia, que está “ moribundando” em uma exploração que parece nunca ter fim, ainda sonha. Não perdeu a esperança. Os seus habitantes possuem desejos e continuam vivendo. Como disse o próprio Mia Couto em entrevista dada a TV Cultura “pessimismo é coisa de rico”, as suas personagens vão seguindo com a vida: “ Qualquer coisa vai acontecer qualquer dia. E essa guerra vai acabar. A estrada já vai-se encher de gente, camiões como no tempo de antigamente”. A questão da esperança; de encontrar um outro continente dentro da África; do desejo do fim das guerras, não apenas no Moçambique mas da exploração em todo continente africano é muito marcante.


Se o “sonho é o olho da vida”, então leitor te convido a sonhar com as diversas histórias de Terra Sonâmbula. Te convido a mergulhar no universo da tradição oral. Te convido a conhecer uma outra cultura, marcada pela presença dos antepassados, de superstições, ditados populares, poesia “Riem-se, o rapaz e Tuahir. Mas o homem insiste, no sério. Sim, por aquele leito fundo haveria de cursar um rio, fluviando até o infinito mar. As águas haveriam de nutrir as muitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas”. Te convido a mergulhar em uma história em que os conflitos das relações humanos são abordados de forma crua. Te convido a participar de um universo único, cheio de “brincriações”, em que você pode “ se meninar” outra vez !

Bibliografia:

  • Livro Terra Sonâmbula

  • https://www.youtube.com/watch?v=3J2zbbux8mY

  • https://www.youtube.com/watch?v=6p5b3-SV6JI

  • http://www.portaldogoverno.gov.mz/Mozambique/resHistorico

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