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Um passeio ao marco do cinema político Italiano dos anos 60 e 70


O cinema político italiano nos anos 60 e 70


Investigação de um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita[if !supportFootnotes][1][endif] é considerado, pela grande maioria dos estudiosos do chamado cinema de engajamento político italiano, o marco principal desse movimento. Movidos por um profundo desejo de fazer justiça, os diretores do cinema político italiano dos anos 60 e 70, herdeiros diretos dos diretores do neo-realismo italiano(1943-1952), apropriam-se das lições de seus mestres adaptando os temas e os argumentos as novas formas de expressão, dando uma lição de estilo e linguagem. Afinal, a Itália que saíra da guerra e do difícil período de reconstrução, ao longo dos anos 50, muda radicalmente no início da década seguinte.


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O florescimento de uma economia predominantemente industrial, mudou a fisionomia da Itália que, após um vínculo de séculos com a fadiga do trabalho agrícola, conhece o trabalho nas fábricas. Os fluxos migratórios, do Sul ao Norte, onde se concentram as indústrias, criam tensões e dificuldades entre italianos e italianos, ao mesmo tempo em que redesenham os mapas das diversas camadas sociais da população. Concomitantemente, assiste-se ao crescimento ilimitado de fortunas pessoais e, no mesmo ritmo, ao aumento da corrupção; do terrorismo de esquerda e de direita; ao aparecimento das primeiras rachaduras no edifício da democracia, fissuras que se insinuavam até mesmo nos salões de Justiça, onde, durante o período em questão, torna-se permeável à corrupção, seja por parte da máfia, da criminalidade comum ou da política.

[endif] A fonte do cinema engajado dos anos 60 e 70 é o neo-realismo italiano de grandes expoentes do cinema como Vittorio De Sica, Roberto Rosselini, Luchino Visconti, Frederico Fellini, Michelangelo Antonioni, entre outros. Os cineastas italianos do neo-realismo foram os responsáveis pela ruptura com a narrativa clássica tradicional, moldada no esquema de David Ward Griffith, o realizador de O nascimento de uma nação, 1914, e de Intolerância, 1916. Os neo-realistas, ao fundarem uma nova linguagem cinematográfica, estabelecendo o domínio anti-narrativo, servem de inspiração aos cineastas do movimento seguinte. Além da lição neo-realista havia, nos anos 60, uma efervescência muito grande em termos da procura de renovação da linguagem do filme, dando origem a surtos como a Nouvelle Vague[if !supportFootnotes][2][endif], na França, Cinema Novo[if !supportFootnotes][3][endif], no Brasil, Cinema Underground Novaiorquino[if !supportFootnotes][4][endif], etc.

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O cinema italiano do alvorecer da década de 60 já tinha abandonado quase o esquema neo-realista ou reciclado sua proposta. A câmera transforma-se em uma arma ideológica de crítica à ordem, aos rearranjos da exploração social, aos desvios obtusos da nova burguesia industrial, ao cinismo, à corrupção, a vilania toda que se reordenava no campo dos bons e dos maus.


Assim, a partir de O bandido Giuliano(Salvatore Giuliano), 1961, de Francesco Rosi, tem-se início os filmes engajados, de denúncia, que vão a fundo nas contradições da sociedade italiana, expondo-as como verdadeiras fraturas expostas. Elio Petri, o ativista comunista.


(Roma, 1929-1982)


Filho de uma família de operários, Ellio Petri foi militante ativo do Partido Comunista Italiano até 1956, abandonando as suas fileiras após a invasão soviética da Hungria. Em 1951 estreara no cinema como autor de pesquisa jornalística, enquanto isso também assinava a crítica cinematográfica para o órgão comunista L’Unitá. Dirigiu documentários e escreveu roteiros para vários cineastas, antes de se iniciar como diretor de longas de ficção. Evoluiu para o cinema socialmente engajado até realizar com o roteirista Ugo Pirro e com Volonté, o título máximo do gênero, Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita. Um forte interesse pela psicanálise enriqueceu de sentidos todos os seus filmes e rendeu até mesmo um drama sobre o universo interior de um pintor: Um lugar tranquilo no campo.

Os resultados obtidos por Petri, não eram estudados, mas provocados. Ele preparava tudo meticulosamente, depois colhia o momento.


O pessimismo de Elio Petri em relação ao Oscar, declarado à agência ANSA, durante uma entrevista concedida pelo diretor.


Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita recebeu o Prêmio Especial do Júri, que culminou no Oscar, fato que desagradou o diretor. Numa entrevista à agência ANSA, ele declarou: “Nada fiz para obter o Oscar, tampouco para recusá-lo. O objetivo ao qual se propõe todo autor, quando realiza um filme, é o de procurar divulgar o máximo possível sua própria obra, como também os propósitos que defende cegamente. Assim sendo, nunca se torna possível negar os prémios que nos atribuem em geral. O Oscar, no caso, chega a contribuir bastante para divulgar esses nossos propósitos. E, evidentemente, todos os prêmios nos sensibilizam e nos comovem. Eu me sinto como se tivesse voltado à infância e recebido um franco sorriso de um adulto que gosta de uma determinada atitude nossa. Mas agora, vejam bem o que eu disse e percebam porque, justamente por isso, os prêmios são nocivos para nós, criadores, de vanguarda ou não: é que, neste sentido, o prêmio transforma-se num perigoso veículo de condução e transformação, levando o criador a ser tomado por um espírito individualista perante a sua sociedade. Assim sendo, o prêmio, e isso eu combato abertamente, adquire graves formas de competição, somando mais desvantagens para o espírito de fraternidade universal. Sem querer demonstrar demasiado radicalismo, o que pode ser interpretado gratuitamente, gostaria de falar mais a respeito.

Quero deixar claro que o prêmio por si mesmo denuncia a sua própria inconveniência e falta de atualidade, constituindo-se em símbolo de uma maneira de viver e de considerar as relações sociais como relações individualistas, de tipo autoritário, paternalista. Se é de fato necessário, também posso agradecer o Oscar dizendo as mesmas coisas que sempre são ditas: que ele é de toda a minha equipe, que ele é bom para divulgar um pouquinho mais as boas obras do cinema italiano e para buscar um reconhecimento que ninguém consegue depois de [se posicionar] como testemunha de acusação dos problemas da sociedade italiana. E também […] gostaria de citar os nomes de meus colaboradores: Gian Maria Volonté, Florinda Bolkan, Gianni Santucci e Salvo Randone […] os principais intérpretes; produziram o filme Marina Cicogna e Daniele Senators; o diretor de fotografia foi o excepcional Luigi Kuveiller, responsabilizando-se pela montagem Ruggero Mastroianni, auxiliado pelos técnicos Terzano Annunziata, Emidi e Colette. (…) Não que eu queira demonstrar intransigência, mas é que ganhar um Oscar, vendo a estrutura do ambiente no qual ele é atribuído, pode projetar algumas sombras sobre a película, pode projetar algumas sombras sobre a película, pode fazer com que todos que a viram, considerem-na avançada, polêmica, de denúncia, enfim, situando determinada sociedade. O meu medo é que o próprio Oscar venha a desvirtuar o sentido de meu filme, mesmo sabendo que os fatos [nele] avaliados possam ser compartilhados por uma ampla camada da sociedade norte-americana. Evidentemente, nos Estados Unidos, […] o problema dos homens acima de todas e qualquer suspeita é igual e profundamente sentido.”


Filmografia essencial


O assassino [L’assassino], 1961; Os dias são numerados [I giorni contati], 1962; O mestre de Vigevano [Il maestro di Vigevano], 1963; Pecado na tarde [Peccato nel pomeriggio], 1964; A décima vítima [La decima vittima], 1965; Condenado pela máfia [A ciascuno il suo], 1967; Um lugar tranquilo no campo [Un tranquillo posto di campagna], 1968; Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita [Indagine su nu cittadino al di sopra di ogni sospetto], 1969; Hipótese sobre Giuseppe Pinelli [Ipotesi su Giuseppe Pinelli], no episódio de Documentos sobre Pinelli [Documenti su Pinelli], 1970; A classe operária vai ao paraíso [ La classe operaria va in paradiso], 1972; Juízo final [Todo modo], 1976; Le mani sporche [As mãos sujas], 1979; Buone noticie [Boas notícias], 1980.


Ugo Pirro, uma das vozes mais lúcidas do cinema Italiano


Nascido em Salerno, 1920. É um escritor e roteirista militante do cinema de engajamento italiano dos ano 60 e 70. Ao longo dos anos, Pirro jamais abandonou sua opção política e continuou trabalhando em cinema de qualidade, mantendo-se distante de produções televisivas de grande sucesso, mas de pouca densidade, que dominam o panorama italiano.

Colaborou com grandes nomes do cinema político italiano, mas foi na associação com Petri que atingiu o auge da arte escrita. A colaboração premiada por muitos reconhecimentos oficiais na Itália e no Exterior, culmina com o Oscar de melhor filme estrangeiro por Investigação de um Cidadão acima de qualquer suspeita, 1969.

Em entrevista concedida por Pirro, ele explica como desenvolveu o tema de Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita: “De modo banal, como muitas vezes aparecem as ideias. Eu estava indo para casa, no carro, e tudo estava parado pelo trânsito. A pista à minha esquerda, isto é, aquela reservada ao tráfego em sentido contrário, estava livre. Então, um carro saltou para fora da fila e, aproveitando a faixa da mão oposta, desapareceu sem respeitar os outros. Lembro-me de ter pensado: se os guardas pararem esse homem e descobrirem que ele é um policial, ele se safa bem na nossa cara. Contei a ideia a Petri e juntos desenvolvemos a ideia de impunidade de um policial”


A feliz parceria de Elio Petri, Ugo Pirro e Gian Maria Volonté


Gian Maria Volonté, foi um ator italiano, o rosto mais conhecido da Itália no período entre 60 e 70. Filiado ao Partido Comunista Italiano desde o início da década de 1960, foi um dos atores mais engajados do cinema italiano e também um dos mais premiados em festivais de todo o mundo. Faleceu em 1994. Atuou como o protagonista, Lulu Massa em A Classe Operária Vai ao Paraíso, filme que também teve o seu roteiro produzido por Elio Petri em parceria com Ugo Pirro, uma feliz parceria.

Em entrevista concedida, Ugo Pirro elogiou a naturalidade com que Volonté atuava. Disse que durante as filmagens, “o senhor Volonté retocou todos os diálogos, adaptando-os à própria interpretação, tornando-os intimamente seus.”


A cearense que foi musa do cinema político italiano


Florinda Bolkan, definida por Elio Petri como a naturalidade em pessoa, foi uma atriz brasileira. Viveu em Fortaleza e no Rio de Janeiro, até ser descoberta por Luchino Visconti, diretor italiano, que levou a atriz a fazer carreira no cinema italiano. Foi uma das atrizes mais serias do cinema italiano, à primeira vista pode não dizer nada; tem um ar de enfermeira bonita, de mulher que consegue tudo pelo mindinho. Aos poucos, contudo, vai se revelando no seu rosto, no seu sorriso, no seu modo de olhar, na sua naturalidade de gestos, uma emoção, um impulso sincero para as coisas, uma iluminação íntima que a transformam. Tudo passa a existir fundamente nessa mulher de Cinema.


Ennio Morricone e a trilha sonora[5]


Elio Petri buscou com a trilha sonora, estabelecer uma segunda voz dramática no filme. Em um primeiro momento, Psyco Suite de Bernard Hermann[6] é o embasamento de Ennio Morricone, o então compositor da trilha. Sente-se a tensão uma vez presenciada em Psicose, de Hitchcock. A atmosfera do filme é de suspense. No segundo e terceiro momento, a orquestra busca de modo cínico, identificar-se com os desenhos animados, fabulares e absurdos. Assim, delineia-se o tom irónico que o filme cultiva com cuidado. O compositor italiano, nasceu em 1928, em Roma. Aos 6 anos compôs sua primeira música. Desde o início de sua jornada, obteve o incentivo de seus pais para o desenvolvimento de seu talento musical. Formou-se em música, com especialização em trompete. Compôs muitas das trilhas sonoras de grandes diretores como, Pier Paolo Pasolini e Dario Argento, mas suas obras mais conhecidas são as trilhas dos filmes de faroeste que ele compôs, os famosos “bang-bang à italiana”, como o Por um Punhado de Dólares (Per un pugno di dollari, 1964)[7], Era Uma Vez no Oeste (C’era una volta il west, 1968)[8]…


Uma crítica ao Cidadão Acima de Qualquer Suspeita


Antes de ter inicio a trilha sonora, pouco depois da apresentação da equipe de realização do filme, aparece um cartaz em fundo preto, escrito em letras brancas: Qualquer referência a pessoas existentes ou a fatos reais é puramente casual.[9] No próximo segundo, somos apresentados à trilha sonora composta por Ennio Morricone e ao personagem principal do filme, interpretado por Gian Maria Volonté, o chefe do departamento de homicídios, então, promovido a chefe do departamento político-social. Ele aparece na cena de abertura, fundamental para a construção da narrativa. Em um primeiro momento, vemos as suas costas, o seu andar seguro de si. Depois, ele fica de perfil, em posição fotográfica. A câmera aproxima-se dele, e o vemos apertar os olhos, com ar inquiridor, esses olhos dentro da cena, fixos nos olhos do espectador da sala de cinema, são uma presença especialmente incômoda. A câmera segue em frente, rumo a um prédio, no andar onde se encontra a musa do cinema italiano, Florinda Bolkan, a Augusta Terzi. Uma cortina branca esvoaçante está na frente de seu rosto, mas ainda assim, podemos vê-lo nitidamente, sorridente. Vemos o seu sorriso e percebemos, logo de início, a quem aquele olhar e sorriso se dirigem: Ao homem que, ao longo do filme, iremos perceber: não tem nome. Assim somos apresentados aos personagens principais do filme.

Florinda Bolkan representa Augusta Terzi, mulher que, em um primeiro momento caracteriza-se por um profundo sentido de morte, ao espectador desatento, chega a parecer uma louca. Mas ela transcende essa aparência de loucura, encarna uma metáfora contra o poder. De fato, ela saía com o chefe do departamento de homicídios, mas zombava dele, colocava na berlinda os seus aspectos mais viris, e se oferecia a um jovem revolucionário como amante. Se ”ela amava homens de poder” era, justamente, para oprimi-los, para mostrar que podia mais do que eles. Augusta representa uma mulher já emancipada, para além do feminismo. Já o policial, muito bem representado por Gian Maria Volonté, utiliza-se de gestos largos e exagerados, copiados de Mussolini, para encarnar o tipo. O responsável da seção de homicídios da Chefatura da Polícia de Roma, um homem inabalável, mas não imune. Augusta Terzi, sua amante, há todo momento o ridiculariza como policial e como homem de Estado, e ele a tolerava. Até mesmo quando ela dizia “você é uma criança, ainda mais que outros homens que conheci.”



Pace, Antonio. Quem é? “Antonio Pace, nascido em 1946, estudante de química, membro do conselho da faculdade, subversivo, fanático, perigoso, tem cara de criminoso, está sob vigilância telefônica desde maio de 1968.” Assim é fichado o revolucionário, Antonio Pace, também amante de Augusta Terzi, pelos responsáveis pela seção de crimes políticos. Augusta, sobre o amante, diz: “Ele é um amigo, mora aqui em cima. É jovem, belo e até mesmo revolucionário.” Antonio Pace, no filme, representa os estudantes. A poesia da juventude. Uma das frases mais lúcidas da narração é dita pelo revolucionário:”Um criminoso dirigindo a repressão, é perfeito”


Sucesso de bilheteria e de crítica, o filme de Petri trabalha com a construção de personagens complexos, como pode ser visto neste estudo retirado do livro Cinema Político Italiano dos anos 60 e 70:

“(…)O delegado sem nome, ao qual Volontè dá corpo e alma, é o protótipo do pequeno-burguês cheio de aspirações reprimidas: é um facista disfarçado de representante da lei, um machista que cultua uma virilidade ostentada para esconder frustrações sexuais mal dissimuladas, um sádico com sofreguidão de poder e que se considera para além da lei. Por outro lado é a imagem do italiano que se considera incapaz de desfrutar a democracia: fraco com os fortes e forte com os fracos, pronto a confessar as próprias culpas, porque sabe que ficará impune. Ao seu lado, a Itália dos pequenos burocratas, dos policiais mal renumerados, dos estudantes incapazes de uma verdadeira revolução. Apenas a mulher, liberada e já além do feminismo, rebela-se, pondo na berlinda o falso machismo do policial, mas ela morre vitima de seu próprio desafio. O poder elimina quem desarranja as cartas, quem coloca em risco os planos da corrupção, quem trava os mecanismos de conservação de privilégios.”(PRUDENZI; RESEGOTTI, 2006, p.24)


O roteiro, desenvolvido por Elio Petri em parceria com o seu grande amigo Ugo Pirro, foi baseado na ideia de impunidade de um policial. O argumento utilizado pelos roteiristas, encarregou-nos de uma responsabilidade ética e civil de iluminar as zonas obscuras do poder e da sociedade. Trata-se de uma obraprima, capaz de conjugar denúncia social, engajamento político, investigação psicanalítica, analise dos mecanismos de lutas de classe, a relação entre o sexo e o poder e, ainda, a diferença que existe entre o exercício teórico e prático no Sistema Judiciário em uma Itália pós segunda guerra mundial e pós Fascismo. Influenciados por Bertold Becht[10], os roteiristas buscaram tratar a matéria com distanciamento, esforçavam-se para “observar sem participar”, permanecendo, contudo, atores do movimento que se desenvolvia. Assim, representaram uma reflexão, uma representação do registro do sentimento do realizador. Em cena, uma cena. A imagem que a câmera buscou captar teve, assim, um gesto mais próximo do barroco* do que aquele empregado em uma realidade objetiva, a atmosfera constituída é de absurdo e pesadelo. O ritmo narrativo dá-se com a colagem entre presente, flashbacks e alucinações.



Depois de assumir a chefia da polícia política, um policial mata a amante e espalha sinais de sua presença no local do crime. A narrativa é simples, direta. O filme de Elio Petri que é livremente baseado no romance[11] Crime e Castigo[12] do escritor russo Fiódor Dostoiévski, levanta as mesmas questões relativas à corrupção do poder e da moral. O inspetor de polícia, o policial corrupto que nos é apresentado logo no inicio, assim como Rodion Românovich Raskólnikov, comete um crime, mas, ao contrário deste personagem, que era um homem comum, um ex-estudante russo, o policial, o detentor do poder, o responsável pela manutenção da ordem, é protegido pelas pessoas que o circundam, detentoras desse mesmo poder. Estas, por sua vez, também escondem todos os seus crimes e pecados por de trás de uma cortina de moralidade. Assim, são todas impunes, moralmente corretas.



O inspetor de polícia, cujo nome desconhecemos, após cometer o homícidio doloso, não se preocupa em esconder as evidências do crime. Deixa, propositalmente, rastros de sua autoria no delito. Um fio de sua gravata é calculadamente posto em baixo da unha de Augusta - sua amante, a vitima do homícidio. Após cometer o crime, o policial ainda toma banho, bebe café, deixa suas digitais por todos os cantos da casa da vitima. É absurda a frieza e tranquilidade com que ele realiza todo o procedimento. E toda a tranquilidade deve-se unicamente ao fato dele saber que está acima da lei. Em Crime e Castigo Raskólnikov cometeu um crime, para averiguar se era um homem extraordinário[13], ao passo que em Investigação Sobre Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, o policial comete um crime experimental, com a tranquilidade de quem sabe que não será punido.



Em um momento de alucinação enquanto se exercita, o policial sem-nome grava a confissão do delito que cometeu em um gravador: “Às 16:00horas de domingo, 24 de Agosto, eu matei Dona Augusta Terzi com fria determinação. Tenho apenas um atenuante. A vitima estava sempre zombando de mim. Deixei pistas por toda parte não para atrapalhar as investigações mas para provar, para não induzir em erro as investigações, mas para provar, para provar a minha insuspeitabilidade. Todavia, se um inocente for condenado em meu lugar, a minha insuspeitabilidade não será provada.” O discurso aqui exposto na íntegra é auto-explicativo. O policial matou sua amante, a Dona Augusta Terzi, para provar que como homem da lei, está acima da lei. Com fria determinação, cometeu o crime e lançou vestígios de sua autoria pelo local.“O assassino é um idiota, superficial e fútil.(…)Ele pegou as jóias pra fingir um assalto mas deixou 300.000 liras. Em seguida ele se lavou e se vestiu usando o sabão francês da vítima. Ele andou sobre o sangue deixando pistas por todos os lados. Para nós trata-se de importantes pistas. “


Em um outro momento de alucinação, de pesadelo, o protagonista, o policial sem-nome - e sem nome justamente para representar toda uma classe de parasitas - reflete, aos delírios, acerca do que pode lhe acontecer e, assim, cita o artigo 247 do Código Penal Italiano de 1969:

Art. 247.

“Casos em que pode ser ordenada a prisão domiciliar.”

I.Quando a circunstâncias dos fatos e as qualidades morais do preso permitam que o Procurador da República ou o juiz possam determinar com decreto motivado que em vez de ser preso a pessoa do detido fique provisoriamente em estado de detenção na sua moradia.



Ou seja, o policial poderia vir a receber ordenação de prisão domiciliar, visto que desfrutava de sanidade moral e intelectual. E, não fosse isso, poderia depender apenas e tão somente da boa vontade do juiz ou do Procurador da República. Contudo, as “quase preocupações” do protagonista foram desnecessárias. Como homem da lei, ele estava acima dela. A partir disso, a lei não pôde puni-lo. Os seus “camaradas”, companheiros de trabalho, não permitiram ao inspetor que ele se entregasse à justiça, optaram por usar da autoridade de que dispunham para “eliminar as provas” que remetiam a culpa ao inspetor de polícia.


Afinal, culpa-lo seria como condenar toda uma classe de parasitas. Portanto, somente a consciência do crime praticado é que teve alguma capacidade punitiva.

A lei e a justiça, instrumentos de manutenção do poder, refletem uma sociedade que se erige e sustenta na desigualdade social, econômica e de direito. Para tanto, vale citar um trecho retirado de Vigiar e Punir[14]:

“Seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo o mundo, em nome de todo o mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige, principalmente, às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos Tribunais não é a sociedade inteira que julga um dos seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.(…)A lei e a justiça não hesitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe“ ( FOCAULT, 2013, p.243).


Assim, em um desfecho magnífico, Kafka, O Processo[15], é citado por Petri em seu epílogo: “Não importa a impressão que nos dê, ele é um servidor da Lei portanto pertence à Lei e escapa ao juízo humano.” Petri, com o seu cidadão acima de qualquer suspeita, iguala-se à Kafka, ao nos apresentar o abuso da autoridade cometido pelo sistema judiciário. Diferencia-se por retratar a questão por dentro do sistema - Kafka buscou retratar a situação por meio dos sofrimentos de um cidadão comum.

O filme acaba com a citação Kafkaniana, mas a visita ao cidadão acima de qualquer suspeita, findará com um bombardeio à sede de polícia. A sede de polícia é bombardeada por militantes terroristas de esquerda. Ninguém é ferido. As consequências do ato, são apenas um buraco na sede e um despertar para a função provocado pelo barulho da explosão. Ao trabalho, os policiais detém os suspeitos do ato terrorista e, assim que buscam comparar os homens detidos com os homens já arquivados por crimes políticos, chegam a conclusão de que “os revolucionário têm o mesmo nome de trinta anos atrás”, “a revolução está em seu sangue”.



Um retrato da democracia Italiana de 1969

Ao longo do filme, vários são os momentos em que os homens da lei fazem discursos em louvor da democracia Italiana. Petri utiliza-se dessa exaltação à democracia, para por meio de discursos irônicos, expor as fraturas do regime em vigor. Procura, também, apresentar as relações corriqueiras que costumam ser estabelecidas entre os homens comuns e os homens acima da lei para sustentar o argumento Kafkaniano do qual se utilizou em seu epílogo: “Não importa a impressão que nos dê, ele é um servidor da Lei portanto pertence à Lei e escapa ao juízo humano.”

O discurso realizado pelo policial sem nome, na ocasião da promoção à seção de crimes políticos, é um exemplo de discurso absurdo realizado em um país democrático, aplaudido pelos homens da lei: “(…) O uso da liberdade é uma constante ameaça para os tradicionais poderes e às autoridades constituídas. O uso da liberdade torna qualquer cidadão um juiz e impede o livre uso das nossas funções! Defendemos a lei que deve ser imutável e gravada no tempo! O povo é imaturo, a cidade está doente. Outros têm a tarefa de educar e curá-la. Temos o dever de reprimi-la! A repressão é nossa vacina. Repressão e civilização! Os membros do comitê aplaudem, em pé o discurso do “camarada”, que o realiza com a toda a expressividade de um Mussolini.


O momento do confronto entre a autoridade inquestionável, o assassino que se impõe como um homem acima de qualquer suspeita, e o homem comum, também é especialmente importante. Neste instante, o policial pede um favor ao desconhecido que conta os trocados na frente de uma vitrine de gravatas. Tratase de um velho encanador, de poucos gestos, quase nenhuma fala e de olhos bem abertos. Pronto a exercer a sua qualidade de cristão, o velho, prontamente, presta ajuda ao desconhecido. O velho, que termina por mencionar-se um encanador, mete-se em uma roubada. O próximo pedido do homem é o de que ele vá até à delegacia, denuncia-lo pelo crime Terzi - conhecido pelos jornais. Pronto a exercer a sua qualidade de cidadão, o velho cumpre este outro pedido. Na delegacia, ao reconhecer que o conteúdo de sua denúncia dirige-se a uma autoridade acima de qualquer suspeita, o velho recua. Nega, assustado, a tudo o que dissera. Pede perdão, reclama da vista. É com este homem simples, vítima de um sistema repressivo, que o espectador se identifica. O espectador que presencia a todos os fatos como testemunha, também encontra-se de mãos atadas.

Um flashback do policial sem nome, também mostra uma situação onde a autoridade de um homem, coloca-se acima da lei. Durante um passeio de carro rumo à praia, com o policial sem nome, Augusta pede ao representante de uma classe de parasitas que avance no sinal vermelho, e mostre ao guarda responsável pela fiscalização, quem ele é, um homem acima da lei, e que por fim, trate mal ao mero guarda. O policial reluta, mas aceita. Avança quando a ordem expressa é a de que pare. Mostra ao guarda, que o repreende, quem ele é. A ordem. Assim, passa ileso. Mas permanece pouco convicto do poder de sua autoridade. Precisa de mais provas. No meio de uma conversa na praia, diz à Augusta: Você ainda não me convenceu de que a ilegalidade, na minha posição, é mais fácil de ser praticada. A grande prova viera a calhar com a morte de Augusta. O policial matou a amante que o ridicularizava e, no final, declarou-se inocente. Eu confesso a minha inocência. Declarou-se desprovido de culpa, a pedido de amigos. Amigos que como ele representam o poder, a autoridade constituída. Continuou, pressupõe-se, dirigindo o departamento politico social. Como disse Antonio Pace,”um criminoso dirigindo a repressão, é perfeito.”

Assiste-se no filme de Petri a um cinema que se doa à descrição de um fenômeno que já estava diante dos olhos de todos: A “legalização da ilegalidade”, o momento preciso em que a corrupção passa de condição ilícita para modelo institucional aceito.

Notas:

[1] Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto

[2] A Nouvelle Vague instaurou uma nova forma de fazer filmes, baseada nos ensinamentos de André Bazin e também no Neo realismo Italiano. Além disso os realizadores da Nouvelle Vague também foram responsáveis pela instauração da “política dos autores”, que exaltava autores de filmes como Orson Welles e Alfred Hitchcock.

[3] Influenciados pelo Neo-realismo italiano e pela "Nouvelle Vague" francesa, um grupo de jovens frustrados com a falência das grandes companhias cinematográficas paulistas resolveu lutar por um cinema com mais realidade, mais conteúdo e menor custo. Foi nascendo o chamado Cinema Novo. A figura de maior destaque do movimento é Glauber Rocha.

[4] Underground é uma expressão usada para designar um ambiente cultural que foge dos padrões comerciais, dos modismos e que, portanto, está fora da mídia. Este movimento de vanguarda que também atingiu ao cinema, caracteriza-se pela livre criação e realização do lúdico, do inusitado e provocativo.Andy Wahol um foi um de seus maiores expoentes

[5] https://www.youtube.com/watch?v=Z8MT7wuU5bU

[6] https://www.youtube.com/watch?v=AA7bda37Aco

[7] https://www.youtube.com/watch?v=oMMh2ibYhKw

[8] https://www.youtube.com/watch?v=42NMzFOD8eA

[9] Ogni riferimento a persone esistenti o a fatti realmente accaduti é puramente casuale

[10] Foi um dramaturgo, poeta e diretor alemão do século XX. Este autor era mais um pensador prático, que sempre recriava suas peças ou "experimentos sociológicos", como as preferia chamar, no intuito de aperfeiçoá-las. Pois era através delas que toda sua teoria, crítica e pensamento seriam expostos. Além de dramaturgo e diretor, Brecht foi responsável por aprofundar o método de interpretação do teatro épico, uma das grandes teorias de interpretação do século XX.

[11] http://www.planocritico.com/critica-investigacao-sobre-um-cidadao-acima-de-qualquer-suspeita/

[12] Narra a história de Rodion Românovitch Raskólnikov, um jovem estudante que comete um assassinato e se vê perseguido por sua incapacidade de continuar sua vida após o delito.

[13] O ex-estudante russo, Raskólnikov, desenvolve uma teoria que separa os homens em extraordinários e ordinários. Em sua teoria, os homens ordinários seriam punidos pelos crimes que cometessem, ao passo que os extraordinários passariam impunemente pela história. Napoleão é citado como exemplo de um homem extraordinário que, apesar de ter cometido muitos crimes, passou impune. Raskólnikov comete um crime motivado, sobretudo, pelo desejo de sentir-se extraordinário.

[14] Michel Focault, em 1975, reune em Vigiar e Punir, uma serie de estudos sobre os sistemas de punição, com o intuito de mostrar como os conceitos de crime e penas variaram historicamente, até que nas sociedades industriais se constituíssem, não somente em uma forma de supressão das infrações à lei, mas também como um meio de administrar os perigos de um novo legalismo popular. Em outras palavras, na passagem do século XVIII ao século XIX, houve um cruzamento entre conflitos sociais, resistências aos efeitos da industrialização e crises econômicas; movimentos operários e partidos republicanos. O resultado foi a elaboração de políticas para punir os ilegalismos dos operários: desde a destruição de máquinas, passando pela proibição de constituir associações, o abandono de serviço, a vadiagem.

[15] Romance que nos apresenta a estória de Josef K., bancário que é processado sem saber o motivo. A figura de Josef K. é o paradigma do perseguido que desconhece as causas reais de sua perseguição, tendo que se ater apenas às elucidações alegóricas e falaciosas vindas de variadas fontes. Kafka procurou retratar um autoritarismo da Justiça que se vê com o poder nas mãos para condenar alguém, sem lhe oferecer meios de defesa, ou ao menos conhecimento das razões da punição.

BIBLIOGRAFIA:

O trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=SVV4VAx4IUE

Referências bibliográficas http://www.planocritico.com/critica-investigacao-sobre-um-cidadao-acima-de-qualquer-suspeita/

PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa. Cinema Político Italiano - anos 60 e 70. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

BAZIN, André. O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014.

FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Editora Vozes, 2013.

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