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Michel de Montaigne: educação e finitude

De que nos serve estudar

Senão para nos entediar

E perturbar nossa placidez?

Nós, que, um dia, talvez

Já nesta tarde ou nesta noite,

Seremos entregues ao deus da Morte?

– Pierre de Ronsard, J’ai l’esprit tout ennuyé, Odes, II, 18 (1550).

O século XVI é bastante conhecido por sua contribuição à filosofia política. De fato, dois textos políticos fundamentais apareceram nessa época: O Príncipe (1513) e Os Seis Livros da República (1576-1583). É claro, porém, que esse século ofereceu muito mais do que isso. Para não mencionar senão um exemplo, ele foi bastante significativo para a filosofia moral. Nesse tema em particular, um texto importante da época é certamente Os Ensaios (1572-1592), de Michel de Montaigne, autor que despertou o interesse, não apenas de seus contemporâneos, como La Boétie, mas também dos grandes moralistas franceses do século XVII – Pascal, La Rochefoucauld, La Bruyère – e de alguns nomes não menos ilustres do pensamento moderno, como Friedrich Nietzsche e Michel Foucault.


N’Os Ensaios, Montaigne se ocupa de tudo um pouco; com a liberdade que caracteriza o gênero ensaio, do qual é o inventor, ele escreve sobre conhecimento, política, direito, história das instituições, costumes da aristocracia francesa e dos indígenas americanos, virtude, religião, morte, alimentação, sexualidade (a própria, inclusive). Dispondo de um espaço tão pequeno para expor um pensamento tão múltiplo, é impossível evitar uma redução simplificadora; cientes disso, propomos aqui uma exposição, bastante sumária, do que Montaigne diz a respeito de um tema como a educação.


Tomemos como referência o ensaio Da Educação das Crianças, composto no final dos anos 1570[1]. Nele, Montaigne se dirige a uma condessa francesa, que está grávida, e discorre sobre como entende dever ser a educação adequada à criança. Como é de seu feitio, se apoia, em sua reflexão, na própria experiência pessoal, na experiência histórica e em textos filosóficos e literários da Antiguidade. Não surpreende, pois, que sua pedagogia seja marcada pelas filosofias grega e latina. Por essa razão, algumas linhas sobre o pensamento


Decrepitude, doença e sofrimento compõem a litania triste da

finitude humana. Fig. 1. Hieronymus Bosch (1450-1516),

“A Morte e o Avarento” (detalhe).


antigo podem ser úteis para compreender, ainda que grosseiramente, o projeto pedagógico proposto.


As filosofias antigas, se desenvolveram a lógica e a física, preocuparam-se muito mais com a ética, que nelas ocupava uma posição central. Isso se aplica sobretudo às filosofias helenísticas: no pensamento helênico, as reflexões sobre o conhecer e o ser são vistas apenas como expedientes – valiosos, mas sem valor in se e de per si – para a reflexão sobre o viver bem[2], isto é, para a busca do prazer e da virtude. Uma justificativa pode ser a seguinte: não há tempo. O homem não é Deus para ser infinito; ao contrário, sua vida é breve, sua velhice, iminente, sua morte, certa; decrepitude, doença e sofrimento compõem a litania triste da finitude humana. Não bastasse o tempo ser-nos arrancado (ou nós, dele), nós, por nossa parte, ainda gastamos prodigamente o pouco de tempo que possuímos; não bastasse nosso tempo ser escasso, somos maus administradores do nosso tempo:


A maior parte da nossa vida passa enquanto nós estamos fazendo o que é mal, boa parte enquanto estamos fazendo nada e todo o resto enquanto estamos fazendo aquilo que não convém[3].


É preciso, pois, saber o que fazer com o pouco tempo de que se dispõe. Como, então, deve o sábio usar seu tempo? A resposta a essa questão são as teorias do prazer e da virtude das escolas helênicas: vivendo uma vida simples e natural, desprezando as convenções sociais (cinismo); buscando uma vida sem sofrimento (epicurismo); controlando suas paixões (estoicismo); suspendendo permanentemente o juízo (ceticismo). Economia do tempo, prazer e virtude parecem coincidir no pensamento helênico. Daí o sentimento de urgência que o assombra. Daí também seu pragmatismo radical: fora do problema ético, todo conhecimento é apenas “vaidade e correr atrás do vento” (Eclesiastes 2:17).


Essa mesma percepção da finitude, esse mesmo sentimento de urgência, esse mesmo pragmatismo parecem marcar o pensamento de Montaigne, em geral, e suas propostas pedagógicas, em particular. No ensaio que nos serve de referência, ele alerta sua nobre destinatária sobre o mau uso do tempo (“frequentemente nos afainamos por nada e empregamos muito tempo em formar crianças em coisas nas quais não podem tomar pé”[4]) e sua consequência: “ensinam-nos a viver quando a vida já passou”[5]. Afirma, por outro lado, a necessidade de promover os estudos úteis e barrar aqueles em que falta a utilidade.


O que é uma educação útil para Montaigne? Seu objetivo pode ser resumido na seguinte frase: “morrer bem e viver bem”[6]. Para o ensaísta, que reflete sempre à luz da filosofia antiga, a educação útil é aquela que emprega o tempo para tornar o educando “mais sábio e melhor”[7]. Por isso, diz ele que “o proveito de nosso estudo está em com ele nos termos tornado melhores e mais sensatos”[8].


Fig. 2. Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592)


Para atingir esse objetivo, a educação útil segue algumas estratégias de método, das quais mencionamos as seguintes. Em primeiro lugar: uma educação útil é orientada para a universalidade, não se limita a alguns assuntos e a alguns fins: “para essa aprendizagem, tudo o que se apresenta a nossos olhos serve de livro eficiente”[9]; “coloquem-lhe na mente uma honesta curiosidade de se informar sobre todas as coisas”[10]; “este grande mundo (...), quero que seja esse o livro de meu aluno”[11]. Em segundo lugar: em uma educação útil, o educando não é somente objeto de discurso, mas também sujeito de discurso: “não quero que ele [i.e., o tutor a quem seria confiada a educação do filho da condessa] invente e fale sozinho, quero que escute o discípulo falar por sua vez”[12]. Em vez de simples objeto de julgamento e avaliação, o educando também é juiz e avaliador:


Que ele o faça passar [i.e., que o tutor faça com que a criança passe] tudo pelo crivo e nada aloje em sua cabeça por simples autoridade e confiança; que os princípios de Aristóteles não lhe sejam princípios, não mais que os dos estoicos e epicuristas. Que lhe proponham essa diversidade de opiniões; ele escolherá se puder; se não, permanecerá em dúvida. Seguros e convictos há apenas os loucos[13].


Em terceiro lugar: em uma educação útil, o educando é ensinado a não julgar tanto os outros como a si mesmo (ou julgar os outros apenas para melhor julgar a si mesmo), sua própria conduta, suas próprias afecções, seu próprio julgamento: “que ele se contente em corrigir a si mesmo”[14]. Em quarto lugar: em uma educação útil, o corpo não é desprezado, mas igualmente valorizado: “não basta fortalecer-lhe a alma; é preciso também fortalecer-lhe os músculos”[15], pois “o que se instrui não é uma alma, não é um corpo: é um homem; não se deve separá-lo em dois”[16]. Em quinto lugar: uma educação útil não implica uma disciplina rígida, um conteúdo complicado, um grande esforço; antes, “essa educação deve conduzir-se por uma severa doçura”[17]. É preciso alimentar o apetite e a afeição do educando; de outra forma, cria-se apenas “burros carregados de livros”[18]. A educação útil é da ordem do lúdico.


Veja-se como, no plano pedagógico proposto por Montaigne, o ensino formal, institucional das ciências ocupa um lugar secundário; é, como diz o ensaísta, um “grande ornamento”, não o fundamento de sua pedagogia[19].


Ora, quando dirige seu olhar à situação da educação em sua época, Montaigne não poderia senão revoltar-se. No ensaio comentado, ele identifica diversos vícios, muitas vezes indiretamente, como contraponto à educação ideal, que podem ser agrupados esquematicamente em três modalidades: vícios referentes a quem ensina; ao que e ao como se ensina; a onde se ensina.



Sobre os educadores, Montaigne tem contra eles o que podemos chamar de pedantismo e sofística (o autor mesmo não emprega nenhum desses termos). Pedantes, pois, menos preocupados em conhecer, esforçam-se apenas em dar-se a conhecer[20], suprimindo as falhas inevitáveis de seu saber ora com palavras vazias, ora com palavras emprestadas a outros: “os que têm o corpo franzino aumentam-no com enchimentos; os que têm a matéria minguada inflam-na com palavras”[21]; “é primeiramente injustiça e covardia que, não tendo em seu patrimônio pessoal coisa alguma com que se promover, eles

procurem apresentar-se com um valor alheio”[22]. Sofistas, pois não procuraram as letras para a virtude, mas sim para o ganho e pelos benefícios externos[23].


A propósito do conteúdo e do método, Montaigne critica-lhes a inutilidade. O conteúdo é inútil porque suas “sutilezas espinhosas”[24] não são capazes de melhorar a vida do educando, de auxiliá-lo a “viver bem e morrer bem”:


É uma grande ingenuidade ensinar a nossas crianças ‘Qual é a influência de Peixes, dos signos chamejantes do Leão, dos de Capricórnio que se banha no mar de Hespéria’[25], a ciência dos astros e o movimento da oitava esfera antes dos delas mesmas (...). Cada qual deve dizer assim: ‘Sendo atacado por ambição, avareza, temeridade, superstição, e tendo dentro de mim outros tantos inimigos da vida, irei eu pensar no movimento do mundo?[26]


Por sua vez, o método é inútil porque não é capaz de fazer com que o educando interiorize, compreenda, aplique o conteúdo. Resume-se a acumular informações através da memorização, não rendendo nenhum proveito para quem os acumula. “Não cessam de martelar em nossos ouvidos, como quem despejasse em um funil, e nossa tarefa é apenas repetir o que nos disseram”[27]; como consequência, “fixo alguma coisa disso neste papel; em mim, praticamente nada”[28].


Por fim, referente aos colégios franceses, Montaigne, antecipando-se ao Michel Foucault de Vigiar e Punir, descobre-lhes a rigidez da disciplina. “A disciplina da maioria de nossos colégios sempre me desagradou”[29], ele escreve; pois, ao invés de formar as crianças para a universalidade e a autonomia, a disciplina não faz senão embrutecê-las com métodos excessivamente rígidos. “Como seria mais adequado que as aulas fossem juncadas de flores e de folhas, em vez de pedaços ensanguentados de varas!”[30].


II


É possível criticar o projeto pedagógico de Michel de Montaigne, ainda que ele tenha sido aqui meramente esboçado. É possível dizer que se trata do discurso da nobreza para a nobreza: de fato, assim como sua destinatária, seu autor, como ele próprio não deixa de afirmar ao longo de sua obra, nasceu fidalgo e fala como fidalgo. Então, a nós, que não somos nobres, ele pouco teria a dizer. É possível dizer também que, entre Montaigne e nós, a modernidade interpôs rupturas talvez intransponíveis. Então, a nós, modernos, Os Ensaios não poderiam nos proporcionar senão uma lembrança vaga, nostálgica e melancólica do paraíso perdido.


Pode ser. Mas essas distâncias parecem não impedir que as críticas de Montaigne à educação de seu tempo nos soem familiar. É que essa educação viciada é a nossa: dominada pelo primado da técnica, configurada a partir do modelo empresa, gramscianamente hegemônica, foucautianamente panóptica, nossa educação dificilmente pode nos ensinar a “viver bem e morrer bem”. Ela, como a educação na França renascentista, pouco tem de útil, no sentido que Montaigne atribui à palavra.


É possível, talvez, que a distância que nos separe de Montaigne esteja menos no diagnóstico do que no prognóstico: se os problemas que denuncia são perfeitamente legíveis para nós, nós já não podemos mais entender as soluções que propõe. Ao passo que Montaigne vê o vício e o remédio, nós só podemos ver o vício.

Referências:


[1] MONTAIGNE, Michel. Os Ensaios, vol. I, ensaio XXVI, p. 216-265.

[2] REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, vol. III, p. 149.

[3] SÊNECA, Epistles, vol. I, epístola I, p. 3

[4] MONTAIGNE, 223.

[5] MONTAIGNE, 244.

[6] MONTAIGNE, 238.

[7] MONTAIGNE, 239.

[8] MONTAIGNE, 227.

[9] MONTAIGNE, 228.

[10] MONTAIGNE, 233.

[11] MONTAIGNE, 236.

[12] MONTAIGNE, 224.

[13] MONTAIGNE, 226. Veja-se também, à p. 234: “que não lhe ensine tanto as histórias quanto a julgar sobre elas”. Como consequência, uma educação útil prioriza a liberdade intelectual: p. 232

[14] MONTAIGNE, 231.

[15] MONTAIGNE, 229.

[16] MONTAIGNE, 247.

[17] MONTAIGNE, 247.

[18] MONTAIGNE, 265.

[19] MONTAIGNE, 223 e 228.

[20] MONTAIGNE, 230.

[21] MONTAIGNE, 235.

[22] MONTAIGNE, 221.

[23] MONTAIGNE, 224.

[24] MONTAIGNE, ibidem.

[25] Trata-se de uma citação do poeta grego Anacreonte.

[26] MONTAIGNE, 239

[27] MONTAIGNE, 224.

[28] MONTAIGNE, 218.

[29] MONTAIGNE, 247.

[30] MONTAIGNE, 248.


Bibliografia

MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios, vol. I, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, vol. III, São Paulo: Edições Loyola, 2006.

SÊNECA, Lúcio Aneu. Epistles, vol. I, Londres: Loeb Classical Library, s/d.

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