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“Le lever de la bonne”: uma análise social e estrutural da obra de Eduardo Sívori


“Le lever de la bonne” (título original), “El despertar de la criada” ou, em português, “O despertar da criada”, é uma obra naturalista de Eduardo Sívori (1847-1918), pintor argentino considerado um dos maiores expoentes do realismo pictórico em seu país. Foi um dos fundadores da Sociedad Estímulo de Bellas Artes de Buenos Aires, antecedente direto da Academia Nacional de Bellas Artes.


Exposto pela primeira vez no Salão de Paris em 1887, “Le lever de la bonne” gera alvoroço entre os críticos e intelectuais da época. A figura da criada, nua, desajeitada e estranha, de fato surpreendeu a alta sociedade francesa, no auge de sua Belle Époque, mas não pelo fato de estar nua; na verdade, o nu artístico já era amplamente explorado no séc. XIX. O que causara tal repúdio, na realidade, fora a figura da criada e toda a classe que ela simbolizava.

Sendo assim, não se poderia esperar outra coisa além de críticas totalmente violentas: a obra de Sívori foi apontada como “excessiva”, como uma representação de um corpo feio, sujo e desagradável.

Essa caricatura, publicada em 19 de maio de 1887 em Le Charivari, trazia consigo tal legenda: “le lit est en fer, mais pas le reste!”, que significa, em livre tradução, “a cama é de ferro, mas o resto não!”. Essa frase é irônica. A cama é realmente de ferro, mas a criada é gorda, corpulenta, cuja carne é muito mais suave ao toque do que a cama de ferro. Dessa forma, a frase aponta ironicamente que as formas da criada são arredondadas.


Após causar tanto espanto aos franceses, Sívori envia “O despertar da criada” à sua terra natal, Argentina. Lá, as reações não foram distintas, muito pelo contrário: Sívori sabia que sua obra geraria polêmica, porém a envia mesmo assim; Esse pode ser considerado um dos primeiros gestos vanguardistas na arte argentina, sobretudo por tratar-se de uma denúncia direta dos conflitos sociais. As críticas argentinas foram ainda mais severas, talvez pelo fato de que o nu artístico ainda era,

relativamente, uma novidade no país; “O despertar da criada” ganhou rótulos como “indecente” e “pornográfico”. Na época, a criada fora até mesmo interpretada como sendo uma prostituta.

Uma das críticas foi publicada no Diario El Censor, em Setembro de 1887:

“¿A quién se le ocurre pintar semejante majaderia (disparate), sobre todo cuando la sirvienta es tan fea, tan desgreñada y tan súcia (suja) como la que él ha elegido de modelo?”

Nessa época, a Argentina estava recebendo muitos imigrantes, o que acarretou num período de intensa luta de classes. Talvez, se Sívori dissesse que tratava-se de fato de uma prostituta, o quadro teria sido muito mais fácil de se aceitar, apelando a discursos moralizantes. Mas a pobreza era um tema irritante, principalmente quando o foco era a mulher. O corpo da mulher pobre era feio. Todas as mulheres que trabalhavam e não correspondiam exatamente ao rol de “mães de família” eram vistas como um perigo para sociedade, uma afronta à coletividade.


Observemos agora os aspectos visuais da obra. É possível fazer uma análise estrutural do quadro a partir de linhas verticais e diagonais paralelas, que evidenciam os principais elementos que o compõem. Dentre eles, estão: a vela, a coluna da criada e algumas de suas roupas (nas linhas verticais), as pernas e o restante das roupas (nas linhas diagonais).

Embora os pintores naturalistas seguissem uma linha de renovação iconográfica, ainda é possível verificar elementos e técnicas mais tradicionais, como o chiaroscuro (claro e escuro, luz e sombra), uso da perspectiva e tratamento da superfície. A paleta utilizada é neutra com predominância dos tons quentes, variando tons de ocre, amarelo e azul.


A figura da criada representa a classe trabalhadora e sua simplicidade. Seu corpo destaca-se dramaticamente do fundo neutro, explicitando sua pele escura, seus pés maltratados e suas pernas grossas. Ela está em um ambiente igualmente simples, realizando um ato essencialmente cotidiano: vestir uma meia. O espectador pode inclusive sentir-se próximo à criada, numa relação de intimidade, tanto pelo ambiente em que ela se encontra quanto pela tranquilidade que ela transmite.

Não há idealização: a imagem reflete a realidade crua. Os elementos que nos permitem chegar a essa conclusão são, por exemplo, seus pés feios, seios caídos e unhas amarelas.


Apesar de seu corpo imponente, a criada é vulnerável, por uma questão de classes. Seus pés e mãos maltratados são símbolos da dor, do trabalho e do sofrimento. Exibe um toque de mistério: seu olhar que não se cruza com o do espectador e seu corpo exposto, mas que ao mesmo tempo parece guardar um segredo são elementos que distraem a mente de quem a observa.


Eduardo Sívori não voltou a pintar nus semelhantes; Os nus posteriores foram mais convencionais, seus desenhos se tornaram mais líricos e as cores mais claras, sobretudo em retratos e paisagens.

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